Fundamentos da Teoria Geral dos Sistemas

A contemporaneidade caracteriza-se pela proliferação de fenômenos de elevada complexidade, por interdependências entre sistemas naturais, sociais e tecnológicos, e por desafios que requerem abordagens integradas. Nesse contexto, a Ludwig von Bertalanffy (1901-1972) propôs a concepção de uma “Teoria Geral dos Sistemas” (TGS — em inglês, General Systems Theory, GST) como estrutura analítica destinada a compreender sistemas de diferentes naturezas sob um referencial comum de princípios e leis. A TGS, ao propor que “o todo é mais do que a soma das partes”, oferece-se como instrumento interdisciplinar de integração do conhecimento (Bertalanffy, 1968).

Este módulo objetiva apresentar os fundamentos da TGS, sua origem, suas categorias centrais, assim como sua relevância para o entendimento da complexidade em contextos diversos (biológicos, organizacionais, sociais e tecnológicos). Ademais, serão apresentados exemplos práticos para facilitar a transposição para a sala de aula e para contextos aplicados, tais como a gestão organizacional, saúde e ambiente.


O presente texto está organizado em quatro seções principais:

(1) histórico e conceitual;

(2) principais pressupostos e categorias da TGS;

(3) abordagem da complexidade e da integração do conhecimento;

(4) exemplos práticos de aplicação em diferentes domínios, seguidos de considerações finais.

1. Histórico e Conceitual da Teoria Geral dos Sistemas
1.1 O surgimento da TGS

A gênese da TGS situa-se no contexto das ciências biológicas e da teoria de sistemas emergentes no século XX. Como biólogo teórico, Bertalanffy constatou que muitos fenômenos biológicos não se explicavam adequadamente por abordagens estritamente reducionistas. Ele propôs, então, que se considerasse o organismo como um sistema aberto em constante interação com o ambiente, o que contrastava com a visão tradicional de sistemas fechados (Bertalanffy, 1968).


Em 1945, publicou “Zueiner allgemeinen Systemlehre”, mais tarde expandida para “An Outline of General System Theory” (1950) e finalmente reunida em General System Theory: Foundations, Development, Applications (1968).


Segundo os analistas, a TGS emerge como resposta à fragmentação disciplinar e como esforço de integração das ciências naturais e sociais, postulando que diferentes sistemas — biológicos, sociais, tecnológicos — compartilham princípios organizacionais comuns.

1.2 Definição de sistema e proposta teórica

Na concepção de Bertalanffy, um sistema pode ser entendido como um conjunto de elementos em interação dinâmica, formando um todo organizado e distinto do seu ambiente. Ele assinala que “o todo é mais do que a soma das partes” e que só é possível compreender certos fenômenos considerando-se as interações e a dinâmica entre as partes e o ambiente.


Em suas próprias palavras: “General System Theory, therefore, is a general science of ‘wholeness’. (1) There is a general tendency towards integration in the various sciences, natural and social. (2) Such integration seems to be centred in a general theory of systems. (3) Such theory may be an important means of aiming at exact theory in the non-physical fields of science.”


Assim, a TGS não se propõe a tornar-se uma teoria rígida no sentido dos modelos fechados tradicionais, mas antes um conjunto de princípios para análise e síntese de sistemas heterogêneos — uma teoria de segundo grau, ou meta-teoria.

1.3 Abrangência interdisciplinar

A proposta de Bertalanffy é explicitamente transdisciplinar: a TGS visa identificar leis e princípios comuns a sistemas de diferentes campos — por exemplo, biologia, cibernética, ecologia, sociologia, administração.


Essa abrangência fez com que a TGS participasse do surgimento de campos como a teoria da complexidade, a teoria do caos, os estudos de sistemas adaptativos e a cibernética.


Dessa forma, o curso pretende mostrar como a TGS opera como “ponte” entre disciplinas e como meio de facilitar a integração do conhecimento.

2. Pressupostos Fundamentais e Categorias da TGS

Nesta seção detalham-se alguns dos conceitos-chave da TGS, que servem de alicerce para a compreensão da complexidade sistêmica.

2.1 Sistemas abertos versus fechados

Um dos conceitos centrais de Bertalanffy é a distinção entre sistemas abertos e sistemas fechados. Ele sustenta que muitos fenômenos biológicos e sociais devem ser tratados como sistemas abertos — isto é, trocando energia, matéria ou informação com o ambiente — e não como sistemas isolados.
Em um sistema fechado, aplica-se a segunda lei da termodinâmica de forma direta ( tendência à entropia ), mas em sistemas abertos esta dinâmica pode ser diferente, permitindo organização, crescimento, adaptação.
No âmbito organizacional, por exemplo, uma empresa que interage com o mercado, com fornecedores, com clientes, e adapta-se conforme as contingências ambientais, pode ser entendida como sistema aberto — o que implica que o gestor deve considerar não apenas os subsistemas internos, mas também a interface com o ambiente.

2.2 Homeostase, entropia e equilíbrio dinâmico

Outro princípio relevante é o de equilíbrio dinâmico ou homeostase — sistemas vivos (ou organismos sociais) tendem a manter uma continuidade funcional mediante trocas com o ambiente. Entretanto, segundo Bertalanffy, esse equilíbrio não é estático: os sistemas adaptam-se e evoluem.
A entropia representa a tendência ao desordenamento; em sistemas abertos, através de fluxos de energia ou informação, há possibilidade de redução local de entropia mediante importação de ordem e exportação de desordem. Essa dinâmica permite evolução, crescimento ou complexificação.
No contexto organizacional, uma empresa pode incorporar inovações, reagir a choques externos para manter sua viabilidade — esse processo pode ser modelado sob a perspectiva sistêmica.

2.3 Hierarquia, níveis de sistema e totalidade

A TGS enfatiza a existência de hierarquias ou níveis de sistemas — subsistemas, sistema-superior (supra-sistema) — e a interrelação entre eles.
Por exemplo, num hospital: as unidades de enfermagem, de diagnóstico, a administração formam subsistemas; o hospital como um todo é o sistema; a rede hospitalar ou o sistema de saúde nacional constituem o supra-sistema. A mudança em um subsistema pode afetar o sistema e vice-versa.
Essa abordagem de hierarquias permite compreender que a complexidade não está em cada parte isolada, mas nas interações entre partes e entre níveis diferentes.

2.4 Emergência, sinergia e “o todo é mais que a soma das partes”

Um princípio amplamente citado da TGS é que propriedades emergem da interação entre os elementos do sistema, que não podem ser deduzidas a partir das partes isoladas. Em outras palavras, o sistema apresenta sinergia.


Por exemplo, numa equipe de trabalho bem integrada, a performance coletiva pode exceder a soma das performances individuais — pela coordenação, pelo feedback, pela cultura organizacional. Esse fenômeno é exemplar do pensamento sistêmico.
Esse princípio desafia o reducionismo tradicional que alvo isolava variáveis e buscava explicações unidimensionais.

2.5 Estabilidade, variabilidade e adaptabilidade

A teoria geral dos sistemas aborda também a tensão entre estabilidade (ordem) e variabilidade (mudança). Sistemas viáveis devem possuir adaptabilidade; não basta manter manutenção estática — devem aprender, evoluir, adaptar-se. Este princípio conecta-se com ideias posteriores de sistemas complexos adaptativos.
No contexto organizacional, isso implica em desenvolver mecanismos de aprendizagem organizacional, flexibilidade estrutural e inteligência ambiental, para que o sistema sustente sua operação em ambientes voláteis.

3. Complexidade e Integração do Conhecimento
3.1 Complexidade sob a lente da TGS

Complexidade, nesse contexto, refere-se ao número de componentes em interação, à densidade das interações, à variabilidade, ao grau de imprevisibilidade e à necessidade de abordagens holísticas para compreensão. A TGS oferece um arcabouço para tratar da complexidade, porque enfatiza padrões organizacionais e leis gerais em diversas instâncias.


Diferente de teorias lineares ou puramente causais, o pensamento sistêmico permite lidar com múltiplas variáveis, retroalimentações e estruturas de interdependência — características típicas de fenômenos complexos (ex.: ecossistemas, organizações, redes de inovação).
Em termos de metodologia, isso implica que o pesquisador ou gestor deve abandonar parcialmente a “causa única” e abraçar a “causa rede”, ou seja, a rede de relações que estrutura comportamentos emergentes.

3.2 Integração do conhecimento e interdisciplinaridade

Parte do motivo de criação da TGS foi justamente a fragmentação disciplinar do século XX. Ao propôr uma teoria geral, Bertalanffy buscou facilitar a integração entre áreas de conhecimento — uma postura epistemológica de síntese. 
Na prática, isso significa que pesquisadores de fisioterapia, administração, engenharia, biologia, por exemplo, podem utilizar conceitos sistêmicos comuns para dialogar entre si e colaborar em projetos interdisciplinares. A TGS torna-se, assim, uma “linguagem franca” para integração do saber.
Em contexto corporativo, a integração do conhecimento sob a perspectiva sistêmica implica articular:

  • As disciplinas funcionais (finanças, marketing, operações) como subsistemas de uma organização maior.

  • A interface entre organização e ambiente (mercado, fornecedores, comunidade).

  • A comunicação interdisciplinar entre academia, prática profissional e investigação científica.

3.3 Ferramentas metodológicas e abordagem aplicada

Embora a TGS não prescribe modelos matemáticos estritos para todos os tipos de sistema (essa era uma parte aspiracional de Bertalanffy), ela fornece categorias e regras heurísticas que orientam a modelagem, o desenho de sistemas e a análise de políticas.
Entre as ferramentas que se beneficiam da TGS encontra-se:

  • Mapas de sistema (diagramas de subsistemas e fluxos de entrada/saída).

  • Modelos de feedback e retroalimentação (borrowed da cibernética).

  • Modelos de hierarquia de sistemas (subsistema-sistema-supra-sistema).

  • Abordagens de análise de interdependência e redes.

  • Cinemáticas de sistema aberto (entradas–processos–saídas–retroalimentação).

Para o professor universitário, esta seção pode ser convertida em exercícios práticos em que os estudantes desenham sistemas, identificam componentes, fluxos e retroalimentações e propõem intervenções sistêmicas.

3.4 Relação entre TGS e pensamento complexo

A TGS antecede, mas também alimenta, o campo do pensamento complexo – que enfatiza não apenas a interconectividade mas também a não-linearidade, a auto-organização, a emergência e a adaptatividade. Nesse sentido, a TGS pode ser vista como marco filosófico/meta-teórico que abriu caminho para teorias posteriores de complexidade.


No âmbito da gestão e administração, isso implica considerar a organização como sistema complexo adaptativo, cujas partes interagem em rede, moldando e sendo moldadas pelo ambiente, e onde a aprendizagem contínua e a inovação são centrais.

4. Exemplos Práticos de Aplicação

Nesta seção são apresentados três exemplos práticos, provenientes de diferentes domínios, para ilustrar como a TGS pode ser operacionalizada em contextos reais.

4.1 Exemplo 1 – Saúde: Sistema hospitalar

Considere um hospital universitário como sistema: os diversos departamentos (emergência, internação, ambulatório, administração, logística) são subsistemas que interagem. O hospital interage com o ambiente externo — comunidade, órgãos públicos de saúde, fornecedores, planos de saúde.

A partir de uma perspectiva sistêmica, podemos destacar:

  • Entrada (insumos: recursos financeiros, medicamentos, pessoas, tecnologia).

  • Processos (tratamento, assistência, administração, inovação).

  • Saída (pacientes tratados, conhecimento gerado, indicadores de desempenho).

  • Retroalimentação (dados de desempenho retornam para ajustes, pesquisa clínica altera protocolos).

  • Interdependência entre subsistemas: atrasos na logística impactam o atendimento clínico; cultura organizacional impacta a segurança do paciente.

  • Equilíbrio dinâmico: o hospital deve manter operação contínua (homeostase) mas adaptar-se às crises (ex.: epidemia, cenário pós-pandemia).

 

Sob a lente da TGS, o hospital é um sistema aberto que exige visão holística para melhoria de desempenho. Essa abordagem contrasta com a visão funcionalista que trataria cada departamento isoladamente.
Aplicação docente: em aula pode-se propor aos estudantes mapear o “sistema hospitalar” segundo os subsistemas, fluxos de informação, entradas/saídas, e propor melhoria sistêmica (ex.: integração digital entre ambulatório e internação que reduz falhas).

 

4.2 Exemplo 2 – Organizações e cultura corporativa

No âmbito da administração, uma empresa pode ser vista como sistema: vários departamentos, processos, pessoas, tecnologia, ambiente de mercado.
Exemplificando: uma organização de prestação de serviços (ex.: clínica de fisioterapia). Os subsistemas são: recepção, triagem, atendimento, faturamento, marketing, RH. O ambiente inclui: pacientes, convênios, legislação de saúde, fornecedores.
Sob a ótica da TGS:

  • A empresa deve entender que o desempenho não depende apenas das partes isoladas (por ex., faturamento) mas das interações entre departamentos, fluidez de informação, coordenação entre atendimento e cobrança.

  • Isso corresponde à sinergia: se o departamento financeiro não entende os processos clínicos, pode haver falhas de pagamento, impacto no atendimento, insatisfação do paciente — reflexo da interdependência sistêmica.

  • A adaptação ao ambiente exige que a empresa esteja aberta a inovações (ex.: tele-fisioterapia), a mudanças regulatórias, a feedback de pacientes — ou seja, ela deve ser um sistema aberto, adaptativo.

4.3 Exemplo 3 – Sistemas ambientais e socioecológicos

Outra aplicação relevante refere-se aos sistemas ambientais ou socioecológicos, onde a TGS auxilia a compreender a interdependência entre ecossistemas, sociedade, economia e tecnologia.
Por exemplo: bacia hidrográfica que abastece uma cidade: subsistemas incluem a zona de captação, a rede de tratamento de água, a distribuição, a comunidade de usuários e o sistema de saúde pública. O ambiente mais amplo inclui mudanças climáticas, legislação ambiental, pressão urbana, fornecedores de tecnologia.
Sob o paradigma sistêmico:

  • Importa a totalidade: o ambiente natural, o sistema urbano, o sistema de saúde e o sistema político formam uma rede.

  • Há fluxos de energia, matéria e informação (água, esgoto, dados de consumo, políticas públicas).

  • A adaptabilidade do sistema é essencial: seca severa, poluição ou crescimento urbano acelerado exigem que o sistema seja capaz de ajustes e reorganizações.

  • Emergem efeitos que não seriam previstos pela análise de partes isoladas (ex.: contaminação da água impacta saúde pública, produtividade econômica, infraestrutura urbana).

5. Considerações Finais

O presente módulo apresentou os fundamentos da Teoria Geral dos Sistemas, partindo de sua gênese na obra de Ludwig von Bertalanffy até sua aplicabilidade em diferentes domínios de prática e investigação. Em síntese:

  1. A TGS configura-se como uma abordagem meta-teórica que permite compreender sistemas de diferentes naturezas sob um referencial comum.

  2. Seus conceitos centrais — sistema aberto, hierarquia, emergência, adaptação — oferecem ferramentas heurísticas para enfrentarmos a complexidade contemporânea.

  3. A integração do conhecimento advém da capacidade de articular disciplinas distintas por meio de uma “linguagem sistêmica”.

  4. Os exemplos práticos demonstraram como o pensamento sistêmico pode ser operacionalizado em saúde, organizações e sistemas socioecológicos.

Para o professor universitário, é recomendável que este módulo seja complementado por:

  • Leituras dirigidas da obra de Bertalanffy (por exemplo, General System Theory…).

  • Atividades em grupos de desenho de sistemas, modelagem de fluxos, análise de redes e retroalimentações.

  • Estudo de casos reais e desenvolvimento de projetos de intervenção sistêmica.

  • Avaliação da aprendizagem por meio de relatório de mapeamento sistêmico e proposta de melhoria.

Enfim, a adoção de um referencial sistêmico torna-se cada vez mais relevante em contextos de elevada complexidade, integração de saberes e transformação organizacional. A TGS, longe de estar ultrapassada, continua a inspirar pesquisas e práticas interdisciplinares. Como afirma um autor contemporâneo: “systems cannot be reduced to a series of parts functioning in isolation, but … one must understand the interrelations between these parts” (Improving Healthcare by Embracing Systems Theory, 2016).

Referências

BERTALANFFY, Karl Ludwig von. General System Theory: Foundations, Development, Applications. New York: George Braziller, 1968.
IMPROVING HEALTHCARE BY EMBRACING SYSTEMS THEORY. PMC. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4947551/.
ON THE HISTORY OF LUDWIG VON BERTALANFFY’S “GENERAL SYSTEMOLOGY”. PMC. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4610108/
GENERAL SYSTEMS THEORY. Psychology Fanatic. Disponível em: https://psychologyfanatic.com/general-systems-theory/
GENERAL SYSTEMS THEORY – AN OVERVIEW. ScienceDirect Topics. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/topics/computer-science/general-system-theory.